sexta-feira, 16 de março de 2012

Qual o tipo de pisada?

Aproveitando o bom texto do Ciro, no Mundotri, requento este. De 2010, época que pouca gente lia o blog. 
Quem quiser um pacote com os artigos científicos citados, em pdf, é só me escrever: emil@sti.com.br 




Esta pergunta é clássica, e acredito que todos os corredores já ouviram. Mas esta pergunta estaria sendo feita com o real sentido? Contemplando realmente todos os tipos de pisada? Acredito que não. Tal pergunta se refere a variações da pisada com o calcanhar (heel strike), e as respostas são sempre: neutro, pronado ou supinado. Mas se você não pisa com o calcanhar enquanto corre estas respostas não se aplicam. Muito menos os tênis que estão tentando te vender junto com a resposta. Neste post vou abordar um assunto que vem ganhando força em discussões entre corredores e especialistas: O tipo de pisada. Tentarei ser o mais científico e imparcial possível, já que de antemão adianto que tal escolha é uma questão de gosto. 


Existe ainda um fato paralelo: usar ou não calçados para correr. Mas isso será assunto para outro post.

Quem já leu o livro “Nascidos para Correr” de Christopher McDougall deve, no mínimo, ter se perguntado sobre o fato de como os Tarahumara correm tanto sem calçados adequados. Bem, as respostas do autor são um tanto quanto tendenciosas e conspirativas, sendo totalmente a favor da corrida descalço e da pisada com a parte frontal do pé (forefoot strike).

Foto de uma das corridas relatadas no livro.

Por outro lado, ao observamos a evolução dos tempos nas corridas e consequentemente a demanda por tênis que aprimorem tais tempos, veremos o inverso: Mais amortecimento no calcanhar, número de corredores aumentando e tempos caindo. A grande maioria dos corredores pisa com o calcanhar, e este é um grande argumento para tal tipo de pisada.

Mas quem tem razão? O que a ciência diz a respeito? O que os corredores dizem a respeito?

Como sempre, razão é algo de cada um de nós, que só faz sentido quando encontramos mais pessoas com a mesma razão, e isto não acontece neste assunto. A razão é embasada no conhecimento que temos, portanto é muito variável.

Os corredores expressam as mais diversas opiniões sobre o assunto. Alguns mudaram a pisada e se sentem bem, outros nem sabiam que isso era possível, terceiros sempre correram pisando com a parte frontal. Apesar da experiência própria ser o controle maior do nosso corpo, vou ignorá-la no restante do post, pois a nossa mente atrapalha as respostas corporais de certa maneira. Isso por que podemos responder a esta questão baseados no tipo e marca de tênis que gostamos, tipo de corrida que fazemos, nível atlético que temos, e principalmente na razão. Sendo assim, nos sobra a ciência.

Sou geólogo, estudioso de evolução humana por 6 anos, mas antes disto sou cientista. O cerne da minha profissão é analisar dados, encontrar concordâncias e elaborar hipóteses. Como em tudo que o ser humano faz, podemos colocar nossa opinião nos resultados. Assim, procurarei seguir o mais importante conselho que meu orientador de pós-graduação me deu: “A ciência se faz por perguntas, não por respostas. Reflita, opine, mas deixa perguntas no ar para que o assunto não morra.” Em resumo, ninguém tem razão de nada.

Bem, após o devaneio do parágrafo anterior (aos poucos vou me apresentando), podemos retomar a discussão: O que a ciência diz a respeito? A ciência estuda o padrão de locomoção e o tipo de pisada do ser humano há muito tempo, e sempre esteve intrigada com o alto impacto que nossas articulações recebem a cada passo de damos (LIGHT et al., 1980; DICKINSON et al., 1985; JORGENSEN; EKSTRAND, 1988; JEFFERSON et al., 1990; DE CLERCQ et al., 1994). Ao observarmos estes estudos, podemos chegar a uma conclusão muito lógica: O homem é um mal corredor. Será? Estudos recentes, os mesmos que são apresentados no livro “Nascidos para Correr” mostram uma outra teoria, a de que o ser humano é um corredor de longa distância nato, e que, entre outros motivos, isto se deve ao fato de o humano nativo correria pisando com a parte frontal do pé (LUZI; PIZZINI, 2004; BRAMBLE; LIEBERMAN, 2004; ROLIAN et al., 2009; JUNGERS, 2010). 

Cientificamente, as duas linhas de pesquisa estão corretas. A primeira pelo fato de se basear no que os humanos fazem hoje, pisando com o calcanhar. E a segunda por encontrar indícios do que fazíamos no passado, pisando com a parte frontal do pé. O número de lesões entre os tipos de pisada é o mesmo, inclusive levando em conta o avanço dos tênis. Isto mesmo: NENHUM TÊNIS PREVINE LESÃO RELACIONADA A IMPACTO. Não utilizá-los pode acarretar lesões na sola do pé.

Então qual o argumento para minha colocação no início do post? Por que se formos imparciais, as duas atitudes estão corretas. Não dá para falar que pisar com o calcanhar é errado se milhões de corredores o fazem, com eficiência e com recordes mundiais (sim, a maioria dos corredores de elite pisa com o calcanhar, só que é difícil de ver!). E não dá para falar que é correto pisar com a parte frontal do pé por que o ser humano o fazia no passado. A pergunta está no ar, cabe a você respondê-la.

Argumentos pró-pisada com o calcanhar:

Atualmente, os calçados nos auxiliam na diluição do impacto (o impacto NUNCA diminui, já que calçando um tênis não perdemos massa), possibilitando cada vez mais conforto ao pisar com o calcanhar; A pisada com o calcanhar é uma aceleração direta do caminhar, tornando a prática da corrida algo mais simples para os iniciantes; Milhares de pessoas usam tal pisada, sem se machucar, há décadas; A pisada com a parte frontal do pé só é valida em terrenos naturais, com amortecimento, e não no asfalto/cimento das ruas e estradas.

Argumentos pró-pisada com a parte frontal do pé:

A evolução do corpo humano selecionou tal morfologia de pernas devido à pisada com a parte frontal do pé, uma vez que o amortecedor natural é o conjunto articulações do pé/ gastrocnêmio (panturrilha); A economia de energia desta pisada é muito maior, pois a diluição do impacto é maior, acarretando menor oscilação corporal; Não é necessário um super tênis, já que o amortecedor do calcanhar não será utilizado; O tempo de contato com o solo é menor, tornando a passada mais rápida; Corredores que mudaram para esta pisada, vindos da pisada com o calcanhar, relatam diminuição ou desaparecimento de dores articulares, principalmente no joelho.

Gráfico mostrando a distribuição da força do impacto em função do tempo, na pisada com calcanhar e na pisada com a parte frontal do pé (LIEBERMAN et al., 2010).



SE VOCÊ RESOLVER MODIFICAR SUA PISADA FAÇA ISSO GRADUALMENTE, POIS SUA MUSCULATURA NÃO ESTÁ HABITUADA AO NOVO POSICIONAMENTO E O RISCO DE LESÃO PODE SER GRANDE CASO A MUDANÇA NÃO SEJA GRADUAL. CONSULTE SEMPRE O SEU TREINADOR (PROFISSIONAL DE EDUCAÇÂO FÍSICA E/OU ESPORTE).

Para saber mais:

Abrax!

Referências:
BRAMBLE, D.; LIEBERMAN, D. Endurance running and the evolution of Homo. Nature, v.432, n.7015, p.345-352, 2004.

DE CLERCQ, D.; AERTS, P.; KUNNEN, M. The mechanical characteristics of the human heel pad during foot strike in running: an in vivo cineradiographic study. Journal of biomechanics, v.27, n.10, p.1213-1222, 1994.

DICKINSON, J.; COOK, S.; LEINHARDT, T. The measurement of shock waves following heel strike while running. Journal of biomechanics, v.18, n.6, p.415-422, 1985.

JEFFERSON, R.; COLLINS, J.; WHITTLE, M.; RADIN, E.; O'CONNOR, J. The role of the quadriceps in controlling impulsive forces around heel strike. ARCHIVE: Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part H: Journal of Engineering in Medicine 1989-1996 (vols 203-210), v.204, n.18, p.21-28, 1990.

JORGENSEN, U.; EKSTRAND, J. Significance of heel pad confinement for the shock absorption at heel strike. International Journal of Sports Medicine, v.9, p.468-473, 1988.

JUNGERS, W. Biomechanics: Barefoot running strikes back. Nature, v.463, n.7280, p.433-434, 2010.

LIGHT, L.; MCLELLAN, G.; KLENERMAN, L. Skeletal transients on heel strike in normal walking with different footwear. Journal of biomechanics, v.13, n.6, p.477-480, 1980.

LUZI, L.; PIZZINI, G. Born to run: training our genes to cope with ecosystem changes in the twentieth century. Sport Sciences for Health, v.1, n.1, p.1-4, 2004.

ROLIAN, C.; LIEBERMAN, D.; HAMILL, J.; SCOTT, J.; WERBEL, W. Walking, running and the evolution of short toes in humans. J. Exp. Biol, v.212, p.713-721, 2009.


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